Leonardo Riella encerra Congresso do Hupe destacando perspectivas bioengenharia e xenotransplantes

A história dos transplantes no mundo ganhou um importante capítulo em março deste ano quando o cirurgião Leonardo Riella realizou, pela primeira vez, transplante de um fígado de porco para um ser humano. Para contar detalhes e explicar a importância deste procedimento para a evolução dos transplantes , Riella ministrou uma aula magna excepcional no encerramento da programação científica do 62º Congresso do Hupe, no último dia 30. Para um auditório lotado de profissionais e estudantes de todas as áreas de saúde, ele falou sobre a cirurgia inédita que foi um marco para a Medicina e ainda traçou um panorama sobre os desafios na área de transplantes apontando perspectivas e desafios na direção dos procedimentos de xenotransplantes.

O médico abriu a aula com um resgate histórico lembrando o nome do norte americano Joseph Murray, que ganhou o prêmio Nobel após realizar o primeiro transplante bem-sucedido, em 1954, nos EUA. Na época foi transplantado um rim entre indivíduos geneticamente semelhantes. Desde então foram  70 anos com muitos avanços como, por exemplo, o aprimoramento das técnicas cirúrgicas. Porém, alguns deles ainda permanecem no cenário atual. “Hoje temos dois grandes desafios em transplantes: primeiro, diminuir as consequências da barreira imunológica; e segundo, termos órgãos suficientes”, pontuou o cirurgião.

Para embasar suas observações, Riella destacou que só no Estados Unidos mais de 100 mil pacientes estão na fila à espera de um transplante. Enquanto a necessidade aumenta, são realizados apenas 12 mil doações de órgãos de doadores cadavéricos. O tempo de espera pela cirurgia no território norte americano tem sido de cinco a seis anos. “Pacientes mais idosos adoecem ou não sobrevivem antes de chegarem ao topo da lista . E, em média, 25 pacientes são removidos da lista a cada dia”, citou Riella traçando um panorama da problemática do doação de órgãos no EUA. “O gat (portão) entre doações e os pacientes ainda tem sido muito grande”, resumiu. Diante desta constatação, ele apontou a bioengenharia e o xenotransplante como duas das principais opções para solucionar (ou amenizar) a problemática.

BARREIRA IMUNOLÓGICA

De acordo com Riella, o desafio constante na área de transplantes em relação à barreira imunológica é exatamente pela complexidade do sistema de defesa do corpo humano. “A principal pergunta é o que podemos utilizar para expandir as células imunoreguladoras quando o transplante é realizado. Pois o que se quer é reeducar o sistema imunológico naquele momento inicial”, explicou. Em busca de respostas para este desafio, o cirurgião destacou as inúmeras pesquisas realizadas nos anos 2000 que levaram à criação de novos protocolos e novos medicamentos que expandem as células reguladoras. O que vem possibilitando, segundo ele destacou, maior tolerância nos transplantes e maior impacto na sobrevida dos pacientes transplantados. “Agora temos a oportunidade do transplante sequencial, que é fazer um transplante de rim (por exemplo) do doador vivo e, seis meses depois, o paciente já pode fazer um transplante de medula óssea”, ressaltou.

ESCASSEZ DE ÓRGÃOS

Em relação à baixa doação de órgãos diante de uma crescente demanda por transplantes, Riella abordou a expansão das pesquisas em bioengenharia e xenotransplante. Ele falou sobre a combinação de fatores que trabalham a capacidade das células tronco em criarem novas células. Riella inclusive apontou os estudos desenvolvidos com o uso da biotecnologia na criação de um rim (por exemplo) com técnicas como Tissue Fabrication que, com uma agulha, imprime até mesmo a  vascularização nos novos órgãos desenvolvidos. “A bioengenharia cresceu muito nos últimos 10 anos. Transformar uma célula tronco em várias células de um órgão ainda tem desafios. Não estamos tão próximo de transplantar pacientes com a bioenegenharia, mas esperamos, de fato que seja um campo de atuação vasto em transplantes em um futuro próximo”, considerou.

XENOTRANSPLANTE

Leonardo Riella abriu a última parte da conferência apontando as perspectivas que o Xenotransplante vislumbra para a Medicina. Ele ressaltou que o tema não é novo, sendo estudado há mais de 60 anos mas que teve um desenvolvimento grande recentemente. Riellla começou explicando o porquê da equipe dele ter escolhido o porco para o primeiro xenotransplante bem sucedido na história. “O porco tem pelo menos três vantagens: Tamanho e funções do rim são semelhantes a dos seres humanos, o tempo de gestação é mais curto, e os filhotes gerados são numerosos”, expôs o cirurgião. Ele lembrou que os animais, nestes casos, são criados em áreas com todos os cuidados possíveis para minimizar alguns riscos infecciosos o que, no entanto, segundo ele expôs, nos macacos este risco é ainda maior.

Até chegar à cirurgia em humanos, os estudos passaram por diversos estágios. Primeiramente, entre 2020 e 2023, foram feitos  xenotransplantes de rins de porcos em macacos. “Conseguimos registrar até dois anos de sobrevida entre os macacos, considerando que nestes animais não há como fazer diálises e os exames são limitados”, observou.

A partir daí, Riella falou que foi iniciada a busca pelo primeiro paciente. “No caso do rim, nós queríamos muito utilizar um paciente que estava na lista de espera, e que tivesse em diálise, mas que não tivesse doador vivo compatível e estivesse em urgência. O paciente que escolhemos tinha uma espera estimada de seis a sete anos, e a perspectiva de ter 84% de chance de não ser transplantado a tempo. Ele tinha uma doença vascular grave e mais de oito anos de diálise. Ele estava em uma janela que a gente diz: é agora ou nunca”, contou.

MARCO NA MEDICINA

O processo de seleção e de aprovação do paciente durou um ano passando também pela aprovação do FDA, órgão regulador norte americano. Tudo acertado, chegou-se a data do transplantes, sábado, dia 16 de março de 2024.  “Começamos com uma cirurgia do doador (o porco) em um centro cirúrgico especial”, relatou.  A partir daí iniciou-se a cirurgia no paciente, que teve duração aproximada de quatro horas. “A parte mais emocionante de tudo, é que na mesa, antes mesmo de conectar o ureter, já observamos a produção de urina, o que achamos que levaria pelo menos 1 dia. E nas próximas 24 horas que ele produziu seis litros de urina. Foi muito bem”, comemorou Riella.

O sucesso do procedimento teve desafios no pós cirurgia. Leonardo Riella lembra que apesar de ter havido rejeição celular na primeira semana, o que é raro, o quadro foi revertido e o paciente conseguiu níveis de creatinina baixo, potássio regulado e pressão estabilizada . “No 20º dia pós-cirurgia, o paciente recebeu alta, sem diálise”, contou o especialista.

Apesar de não revelar o nome do paciente (por questões éticas) Riella lembra que a equipe teve grande conexão com o paciente e com a família. “Fomos exatos com ele dizendo que existia inúmeros pontos desconhecidos principalmente por ser um estudo que nunca tinha sido feito em humanos. Mas ele se propôs e dizia que via isso como uma maneira de trazer esperança para todos os outros pacientes”, relembrou.  

Riella colocou que o quadro da doença coronariana do paciente, no entanto, se agravou.  Com uma fibrose em quase 60% do coração, ele veio a falecer após dois meses do transplante.  A autópsia extensa mostrou a causa da morte associada à doença coronariana e o rim sem processo de rejeição. “Ou seja, ele sobreviveu a cirurgia e sobreviveu a rejeição”, observou Riella.  “Nos próximos transplantes já esperamos fazer um estudo clínico maior, desenvolver três a cinco pacientes, sem doenças cardíacas tão avançadas.  Nosso objetivo é poder expandir e trazer esperanças para inúmeros pacientes”, concluiu sob aplausos.   

              Para saber mais sobre os estudos do cirurgião Leonardo Riella, vale acessar leoriella.com