Excesso de sono durante o dia pode ser doença

Ana Cristina Braga (à dir.) é paciente do Ambulatório dos Distúrbios do Sono do Hupe

 “Eu parava o carro para dormir, comecei a ficar mais cansada. Fui a um ballet no Teatro Municipal e eu dormi no meio do espetáculo…” Esses foram os primeiros sinais que levaram Ana Cristina Braga, funcionária pública aposentada, a perceber que havia algo de errado. Demorou mais de uma década, mas ela conseguiu descobrir o problema: narcolepsia. Uma doença rara que é um distúrbio do sono caracterizado por sonolência excessiva durante o dia, mesmo quando a pessoa dormiu bem à noite. A causa é uma alteração no equilíbrio existente entre algumas substâncias químicas do cérebro.

“Os meus primeiros sintomas de narcolepsia apareceram mais ou menos quando eu tinha uns 30 anos, só que eram mais leves. Meu diagnóstico demorou 12 anos. No Rio de Janeiro não faziam atendimento na rede pública na época”, explica Ana, que hoje tem 50 anos. Atualmente, as pessoas que sofrem deste distúrbio já encontram em alguns locais do Sistema Único de Saúde (SUS) o tratamento. Um deles é o Ambulatório de Distúrbios do Sono do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), que tem um trabalho pioneiro de diagnóstico da doença, sendo o único em neurologia do sono no Estado com vaga aberta para o Sistema de Regulação (Sisreg). 

A neurologista Christianne Martins (à esq.) coordena o Ambulatório de Distúrbios do Sono do Serviço de Neurologia do Hupe

Coordenadora do Ambulatório de Distúrbios do Sono, a neurologista Christianne Martins, explica que a doença é facilmente confundida. “Estamos vivendo em uma época em as pessoas estão dormindo pouco e o sono está banalizado. Está todo mundo cansado sempre. Mas na narcolepsia é um sono fora do comum. A pessoa tem sono a toda hora e pode cochilar em situações inimagináveis como por exemplo, conversando com alguém, comendo, dirigindo”, exemplifica.

A neurologista diz que a pessoa pode ter também ataque de cataplexia, que é perder subitamente o tônus muscular em situações de emoção forte. “A pessoa está feliz, sorri ou chora, toma um susto e pode ficar fraca a ponto de cair no chão, mas não perde a consciência”, conta a médica. Os sintomas da narcolepsia podem incluir também a paralisia do sono de forma frequente, com a incapacidade total de movimentar os membros, a cabeça ou falar ao adormecer ou mesmo despertar, além de alucinações.

 

DIAGNÓSTICO DIFÍCIL – A doença pode se manifestar em crianças a partir dos seis anos, mas é mais comum o aparecimento por volta dos 15, e depois com episódios entre 30 e 35 anos. “É preciso ter uma predisposição genética, porém só isso não basta. Algum mecanismo ambiental provavelmente um vírus, desencadeia uma resposta autoimune que começa a destruir os neurônios produtores de um peptídeo chamado hipocretina e com a falta deste neurotransmissor você começa a ter sono excessivo”, relata a neurologista. Para chegar ao diagnóstico, o tempo de espera médio pode ser muito longo (cerca de 10 a 12 anos) pois depende de um alto grau de suspeição clínico. A especialista acredita que a falta de conhecimento sobre a doença e a pouca disponibilidade de exames diagnósticos também contribuem para esse atraso. Os exames complementares úteis no diagnóstico da narcolepsia são: Teste de múltiplas latências do sono, Dosagem de hipocretina no líquor e Tipificação do HLA DQ1B0602.

Parte da equipe que atua no setor de Distúrbios do Sono, criado em 2014

Nos pacientes do Hupe, essa tipificação é feita através de uma parceria com o Laboratório de Histocompatibilidade e Criopreservação (HLA) da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), cujo responsável é o professor Luis Cristóvão Porto. Já o teste de múltiplas latências do sono começou a ser realizado em janeiro deste ano no Hospital, depois de uma reforma feita nas instalações da sala de exames graças a verba obtida com a realização de um curso para formação de técnicos em polissonografia e eletroencefalograma ministrado pela equipe do Serviço de Neurofisiologia. “Só resta realizar a dosagem de hipocretina para o Hupe completar todo o arsenal diagnóstico para a narcolepsia”, complementa Christianne.

 

COMPLICAÇÕES SOCIAIS – A narcolepsia é uma doença que também pode causar complicações sociais e profissionais para quem a enfrenta. Foi o caso de Ana Braga. “Os meus sintomas pioraram em 2009. Eu comecei a dormir no trabalho, comecei a fazer a mesma coisa duas vezes porque eu tinha que ter certeza… eu não tinha rendimento. Fui transferida de setor e acho que ali começou a minha saga de ser chamada de preguiçosa. Eu estava sempre com atestado e teve um período que o meu maior sonho era trabalhar uma semana direto, sem faltar. E por ser funcionária concursada as pessoas achavam que eu não sofria com aquilo, que faltava porque queria, que fazia corpo mole. Foi um período muito triste da minha vida”, relembra.

Após passar por muitos especialistas, Ana finalmente conseguiu o diagnóstico, mas acabou sendo afastada do trabalho. Aposentada, sem o plano de saúde e com a diminuição de seus rendimentos, ela já não tinha mais o tratamento. Em um dia de crise e desespero, Ana acabou indo parar no Hospital Psiquiátrico Luis Philippe Pinel. Foi lá que ela soube da existência do Ambulatório de Distúrbios do Sono do Hupe. Quem a indicou foi uma médica que já tinha atuado como residente no Ambulatório, já que este recebe residentes de psiquiatria e geriatria, além da neurologia.

“O Ambulatório dos Distúrbios do Sono do Hupe é um sonho para nós, pacientes”, comemora Ana. “Você não imagina o sofrimento que era antes ao ver meus amigos fazendo vaquinha para eu ir fazer o tratamento em São Paulo. Com a doença e a aposentadoria, eu precisei voltar para casa da minha mãe e recomeçar a vida do zero, com um sono sem fim, e sem expectativa de tratamento pelo SUS no Rio de Janeiro. Eu cheguei no Hupe um trapo. Não tinha a menor perspectiva de melhora”, relembra a aposentada. Ela não cansa de agradecer a equipe da neurologista Christianne. “Muito competente e atenciosa. Muitas pessoas não acreditam que um hospital público tenha profissionais assim”, destaca a paciente. Por sua experiência com a narcolepsia, Ana Cristina Braga criou a Associação Brasileira de Narcolepsia e Hipersonia Idiopática. À frente deste grupo de apoio para pessoas com diagnóstico de Narcolepsia, Hipersonia Idiopática e seus familiares, ela e outros representantes de associações de pacientes com doenças raras têm se mobilizado para que o Hupe seja reconhecido como centro de referência na área (vide matéria publicada).

Setor é referência no tratamento a distúrbios do sono

Para a neurologista Christianne Martins é muito gratificante trabalhar na recuperação da qualidade de vida de quem sofre com distúrbios do sono como a narcolepsia: “Eu tenho muito carinho pelo nosso ambulatório; aqui podemos acolher essas pessoas que muitas vezes não encontram atendimento em outros lugares no SUS e é muito bom saber que podemos fazer a diferença na vida dessas pessoas”, resume.

Além da narcolepsia, doenças como insônia e sonambulismo também são tratadas no setor de Distúrbios do Sono. No local também são feitos exames de polissonografia com vídeo monitorização e avaliação neurológica completa que ajudam no diagnóstico em crises epilépticas noturnas. O ambulatório também recebe periodicamente algumas crianças e adolescentes pacientes da neuropediatria com distúrbios do sono.

Um dos exames necessários para o diagnóstico da narcolepsia, o primeiro teste de latência múltipla no Hupe foi realizado em janeiro

Em 2018, o ambulatório ganhou mais uma neurologista e especialista em sono, Paula Valegas permitindo ampliar o número de atendimentos e exames. “Contamos ainda com cinco técnicas experientes as quais estão em constante capacitação, tendo concluído recentemente o curso de análise em polissonografia pelo Instituto do Sono. O setor também foi local de pesquisas com reconhecimento internacional e além disso, a integração com o setor de eletroencefalograma, e um excelente apoio administrativo são fundamentais para o crescimento e qualidade do serviço”, completa a coordenadora Christianne.